sábado, 19 de setembro de 2009

NÃO QUERO CRESCER MAIS!



O NOVO LIVRO DE SANDRA PINTO

O TESOURO DE SELMA LAGERLOF



Selma Lagerlof foi a primeira mulher, na história da literatura, a receber o prémio nobel da literatura.


O tesouro, uma das suas obras, é um romance fantasmagórico, um verdadeiro conto de fadas cheio de intriga e suspense, de paixões contrariadas e de uma justiça divina que se sobrepõe a tudo.

Elsalill , a par do vendedor de peixe, Torarin, que percorre o mar gelado de carroça, fascina o leitor desejoso de lhe adivinhar os passos, sempre surprendentes e inesperados. A riqueza desta personagem descreve o imaginário da sua autora.


segunda-feira, 8 de junho de 2009

SUSHI E RUBI


Jacob toma uma decisão


Sushi chegou à escola com olhos de choro.

— O que aconteceu? — Pergunta Jacob.

— O meu porquinho-da-índia morreu — responde Sushi — O meu Sebastião, que tinha uma pinta preta no nariz.

— Oh — diz Jacob — E, agora, estás triste.

Sushi acena com a cabeça.

— Não podes pedir aos teus pais que te comprem outro? — pergunta Max.

— Podia, mas não quero — diz Sushi — Agora para o fim, o Sebastião era infeliz. Já não queria comer nada, tinha as patas paralisadas. Fazia-me tanta pena!

Sushi chorava.

— O Sebastião era um porquinho-da-índia muito querido — diz Catarina.

— Mas já estava muito velho — comenta Rubi — Todos temos de morrer; tu não podias fazer nada. Vá, não chores assim.

Jesus — pensa Jacob — porque é que o Sebastião teve de ser tão infeliz?....

— Deixa-a chorar — diz ele a Rubi.

— Há coisas mais importantes por que chorar — resmunga Rubi.

Jacob olha para Rubi.

— Pois há — diz Rubi — Mas não se pode passar o tempo todo a chorar.

Jacob fica à espera, mas Rubi não quer falar mais. Só no caminho de regresso a casa começa a contar:

— Os meus pais, afinal, sempre querem divorciar-se.

— Oh! — Exclama Jacob.
— Eu fico com a mãe — conta Rubi — O pai vem buscar-me ao domingo, de quinze em quinze dias. A mãe volta a ir o dia inteiro para o escritório.

— Isso, realmente, não tem graça nenhuma — diz Jacob.

— Se eu pudesse aprender a aquecer a comida — continua Rubi — a avó não tinha de vir todos os dias a minha casa. Não gosto dela. Está sempre a dizer mal do pai.

— Podes vir comer a nossa casa — propõe Jacob — Pelo menos de vez em quando. Assim não tens de aturá-la todos os dias.

— Era… Fala lá com a tua mãe.

Jacob promete que vai falar.

— Nem imaginas a sorte que tens com os teus pais — diz Rubi de repente — Porque é que em nossa casa não pode ser assim? Compreendes isto?

— Não — responde Jacob.

À tarde, Jacob vai com a mãe visitar a bisavó.
— O médico esteve cá hoje — conta a mãe — teve de dar-lhe uma injecção contra as dores — e suspiram — É mau que a bisavó tenha de sofrer assim tanto.

A bisavó não suspira nem se queixa. Só tem a cara um pouco pálida. Olha para Jacob e pergunta:

— Então, há novidades na escola?

Jacob conta o que aconteceu ao porquinho-da-índia da Sushi e que os pais de Rubi vão divorciar-se.

— É uma pena — lamenta a bisavó — Pobre Sebastião. Pobre Sushi. Pobre Rubi. Há tanto sofrimento no mundo!

— E porquê? — Pergunta Jacob.

— É um segredo — responde a bisavó — Poucos têm a resposta para isso.

No regresso, Jacob caminha em silêncio ao lado da mãe.

Jesus — pensa ele — espera só até eu chegar à tua beira. Vou insistir tanto contigo, que hei-de receber uma resposta a todas as minhas perguntas.


Lene Mayer-Skumanz

Jakob und Katharina

Wien, Herder Verlag, 1986

sexta-feira, 29 de maio de 2009

A RAPARIGA E O SONHO

Johannes Vermeer , Rapariga com Brinco de Pérola

Era uma rapariga. E sonhava.
Uma rapariguinha muito ligada às flores, às folhas e tão presa à terra, como se dela tivesse nascido, como uma árvore.Também se sentia muito prisioneira do sol, da lua e das estrelas, que imaginava tão tristes por estarem longe e sozinhas, que se dobravam nas águas do laguinho do jardim, onde as via reflectidas.
De íntimo fantasista e liberto, era do sol, da lua e das estrelas donde imaginava que tinham “chovido” uns seres invisíveis com quem brincava.
E as brincadeiras sucediam-se. Libertavam-na do seu peso e sustentavam-na no ar, quer com vara mágica, quer com um simples dedo.
E às vezes, faziam ainda descer sobre ela, ignoradas, poeiras e orvalhos astrais.E tudo aquilo era maravilhoso, pois adorava subir pelas paredes do ar ou dançar no vento. E, como aqueles serzinhos não eram identificados pelos que a rodeavam, contava-lhes segredos só dela sabidos, fazendo florescer a amizade e entrelaçando os corações num abraço.Tratava-os como uma mãezinha a uns filhos muito amados e contava-lhes histórias inventadas por ela ou deixava um a tomar conta de uma casinha, a fingir, sem telhado.
Outras vezes jogava às escondidas com eles, no jardim, ou vigiava-os, enquanto nadavam no laguinho-oceano, sempre à vista de terra e com a margem longa de ramos, benfazejos, para poderem agarrar-se e não se afogarem.
Também os deixava tomar conta dos seus castelos de puzzles. Mas o que mais gostava era de provar-lhes t-shirts variadas ou tentar tirar-lhes medidas para trajes mágicos. Sim, porque os vestidos dela também eram como os das princesas de “Era uma vez...”, não apenas da cor do tempo, mas acesos por fogos cósmicos, cheios de corações a deitar raízes, de números fugidos da tabuada, espirais galácticas, malmequeres, margaridinhas entre caminhos concha de caracol, flores-aranhas, morangos verde-roxo, cravos alilasados, bocas-beijos, que sei eu.
Também amava brincar com coisas vivas e gostava muito de animais, encantados e encantadores.
Assim era tu cá tu lá com o bichano que, pasmado, a via ser capaz de fazer o pino não sobre a cabeça, mas nas perninhas curtas das tranças.
Às vezes, de repente e sem porquê, ficava triste e silenciosa. Então, o gato e as criaturinhas invisíveis conversavam entre si. O gato, amador de mimos e de festas sobre o pêlo, sentia-se muito abandonado, e, insistente, interrogava um dos serzinhos imaginados, que, cheio de paciência e enigmaticamente, lhe explicava que ela estava a crescer por dentro e sozinha.
Outras vezes, demorava muito tempo a arranjar-se, assistida pela sua aia, uma medusa-lunar que lhe tomava conta de uma joaninha do quintal, jóia-viva, com que fazia gosto de enfeitar-se, depois de vestida atrás da cortina de flores, trepadeiras-trevo.Estava a tornar-se tão íntima de si e tão madura que crescia pelo sonho. Era isso. Mesmo no seu vestidinho andadeiro e de todos os dias, às pintas, como o de qualquer adolescente, e as suas trancinhas, via-se que tinha sofrido uma transformação.Estava prestes a ser a Bela e a entrar no Jardim do Amor, para procurar, através do labirinto, um coração onde o seu pudesse reflectir-se e reconhecer-se.

Luísa Dacosta, Julho de 2001
Luísa Dacosta - A Rapariga e o Sonho
Porto,
Edições Asa, 2006

quarta-feira, 29 de abril de 2009

SANDRA PINTO, A AUTORA ELEITA DAS ADOLESCENTES



A autora visitou a nossa escola no dia 23 de Abril, dia internacional do livro.


Num dos seus livros, escreve:

"Hoje foi o dia mais triste do ano e tinha tudo para ser um dos mais alegres. Era a festa mais importante da aldeia em Moinhos e nós estávamos contentes, porque íamos almoçar a casa do meu avô e havia festa de tarde"

in Apaixono-me sempre pelo rapaz errado



As adolescentes lêem mais depressa os textos que as ajudem a compreender-se nesta fase complexa das suas vidas. Sandra Pinto diz e bem que se não formos adolescentes, poderemos recordar a adolescência, agora, com nostalgia.

sábado, 25 de abril de 2009

A CAMINHO DO DIA 23 DE ABRIL, DIA MUNDIAL DO LIVRO

O GRUPO DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DE 2º CICLO CONTINUA A DEMONSTRAR GRANDE EMPENHO NA CAUSA DO LIVRO E DA LEITURA.


SÃO TANTAS AS HISTÓRIAS QUE O AUTOR CRIOU QUE ANDAM POR AÍ À SOLTA NAS MÃOS DOS MELHORES LEITORES.

ESTAS CRIANÇAS, POR AMAREM O TEATRO, REPRESENTARAM, DE FORMA ADAPTADA, ALGUMAS DAS SUAS HISTÓRIAS, TAIS COMO: "O BURRO MALFADADO", " A ESCADA DE CARACOL" E "VEM AÍ O ZÉ DAS MOSCAS"...
AUTOR E OBRA... UMA FESTA!
A NOSSA ALEGRIA FOI GRANDE, POIS ANTÓNIO TORRADO HAVIA-NOS CONQUISTADO MUITO ANTES COM A SUA OBRA. NO DIA 20 DE ABRIL, A SUA PRESENÇA COMPLETOU O QUADRO.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

ANTÓNIO TORRADO

A 20 de Abril, à tarde


Na Escola E.B. 2,3 de Amares



António José Freire Torrado é o nome completo do poeta que nasceu em Lisboa em 1939. Licenciou-se em Filosofia pela Universidade de Coimbra. Dedicou-se à escrita desde muito novo, tendo começado a publicar aos 18 anos. A sua actividade profissional foi e é diversa: escritor, pedagogo, jornalista, editor, produtor e argumentista para televisão. Tem trabalhado em parceria com Maria Alberta Menéres em diversos livros e programas de televisão.
Actualmente, é Coordenador do Curso Anual de Expressão Poética e Narrativa no Centro de Arte Infantil da Fundação Calouste Gulbenkian. É o professor responsável pela disciplina de Escrita Dramatúrgica na Escola Superior de Teatro e Cinema. É dramaturgo residente na Companhia de Teatro Comuna em Lisboa.
Sendo consensualmente considerado um dos autores mais importantes na literatura infantil portuguesa, possui uma obra bastante extensa e diversificada, que integra textos de raiz popular e tradicional, mas também poesia e sobretudo contos. Reconhece a importância fundamental da literatura infantil enquanto veículo de mensagens, elegendo como valores a promover a liberdade de expressão e o respeito pela diferença.
António Torrado utiliza com frequência o humor em algumas das suas histórias. Por outro lado, em alguns textos de carácter alegórico ou de ambiente oriental, é o registo poético que predomina. De resto, os valores poéticos assumem para o autor uma posição central em qualquer projecto educativo.
Recentemente, começou também a trabalhar novelas e romances para a infância e juventude, mas a vertente mais marcada da sua actividade nos últimos tempos é, sem dúvida, o teatro.



Grande Notícia


Caiu da árvore, no princípio do Outono, uma folha de plátano. Isto não é notícia. Se um jornal publicasse a toda a largura da primeira página ou até numa das páginas interiores, na coluna reservada a desastres e acidentes, esta notícia, assim intitulada:FOLHA DE PLÁTANO CAIU DA ÁRVORE os leitores achariam que era uma maluquice de jornalista e, no dia seguinte, compravam outro jornal diferente. Mesmo que a notícia fosse assim: FOLHA DE PLÁTANO CAI DESPREVENIDAMENTE SOBRE UMA LAGARTIXA, QUE SE ASSUSTOU MUITO mesmo esta notícia, apesar do susto da lagartixa, não tinha sentido num jornal. E se ela se assustou! Estava descansadamente a apanhar sol e cai-lhe uma folha em cima. Claro que fugiu atarantada, tão atarantada que passou pelas patas do gato Maltês, que acordou sobressaltado e logo correu atrás dela. O cão Pimpão, que ia a passar, viu o gato a correr e foi atrás dele. Atrás do gato, o cão Pimpão atravessou a rua, no momento em que a carroça do senhor Cosme, puxada pela égua Linda, ia a passar. Espantou-se a égua, que levantou a toda a altura as patas dianteiras, a carroça desequilibrou-se, o senhor Cosme caiu, mas não se feriu, embora tivesse arrastado ao cair dois cestos com peras que trazia na carroça. As peras rolaram na estrada, e uma camioneta carregada com toros de madeira, que ia atrás da carroça, teve de travar de repente. Como os troncos estavam mal presos (o que é sempre um perigo!), como os troncos estavam mal presos, desabaram, com a sacudidela da camioneta, e caíram em grande confusão sobre a estrada, precisamente na altura em que uma camioneta de carreira ia a passar, em sentido contrário. Para não chocar com os toros, a camioneta, aliás o motorista da camioneta, guinou para a direita e foi embater num poste de electricidade, que caiu por pouca sorte em cima da linha do caminho-de-ferro, mesmo paralela à estrada, onde tudo isto se passou.Felizmente que a senhora Marília, da passagem de nível próxima, estava atenta e accionou logo o sinal de perigo, para que o comboio correio interrompesse a sua marcha... senão, senão tinha havido um grande desastre. Mesmo assim veio notícia no jornal TRÂNSITO FERROVIÁRIO INTERROMPIDO. Só que não disseram os jornais que tudo isto tinha acontecido por causa de uma folha caída de uma árvore e por culpa de uma lagartixa assustadiça... Só nós é que sabemos.

Grande Notícia, de António Torrado in "Conto contigo" Editora Civilização
OBRAS PUBLICADAS


Obras para a infância:


A Chave do Castelo Azul (Lisboa: Plátano, 1969; 2ªed., 1981); A Nuvem e o Caracol (Lisboa: Edições Afrodite, 1971; 4ª ed., Porto: Asa, 1990);O Veado Florido (Lisboa: Ed. O Século, 1972; 5ª ed., Porto: Civilização, 1994);Pinguim em Fundo Branco (Lisboa: Ed. Afrodite, 1973; 2ª ed., Plátano Ed., 1979);O Rato que Rói (Lisboa: Plátano, 1974);O Jardim Zoológico em Casa (Lisboa: Plátano, 1975; 3ª ed., 1980);O Manequim e o Rouxinol (Porto: Asa, 1975; 3ª ed., 1987);Cadeira que Sabe Música (Lisboa: Plátano, 1976);Hoje Há Palhaços (com Maria Alberta Menéres; Lisboa: Plátano, 1977, 2ª ed., 1978);Joaninha à Janela (Lisboa: Livros Horizonte, 1977; 2ª ed., 1980);Há Coisas Assim (Lisboa: Plátano, 1977);O Trono do Rei Escamiro (Lisboa: Plátano, 1977);A Escada de Caracol (Lisboa: Plátano, 1978; 2ª ed.,1984);História Com Grilo Dentro (Porto: Afrontamento, 1979; 2ª ed., 1984);Como se Faz Cor-de-Laranja (Porto: Asa, 1979; 5ª ed., 1993);Vasos de Pé Folgado (Lisboa: Caminho, 1979);O Tambor-Mor (Lisboa: Livros Horizonte, 1980);O Tabuleiro das Surpresas (Lisboa: Plátano, 1981);Os Obscuros, Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores, 1981.O Pajem Não se Cala (Porto: Civilização, 1981; 2ª ed.,1992);O Mercador de Coisa Nenhuma (Porto: Civilização, 1983;2ª ed., 1994);O Livro das Sete Cores (com Maria Alberta Menéres; Lisboa: Momos, 1983);Caidé (Porto: Afrontamento, 1983);Os Meus Amigos (Porto: Asa, 1983;3ª ed.,1990);História em Ponto de Contar (com Maria Alberta Menéres);Lisboa: Comunicação, 1984; 2ª ed., 1989);O Adorável Homem das Neves (Lisboa: Caminho, 1984; 3ª ed.,1995);O Elefante Não Entra na Jogada (Porto: Asa, 1985; 3ª ed., 1990);O Vizinho de Cima (Lisboa: Livros Horizonte, 1985);A Janela do Meu Relógio (Lisboa: Livros Horizonte, 1985);O Rei Menino, Lisboa: Livros Horizonte, 1986);Dez Dedos de Conversa (Lisboa: O Jornal, 1987);Como se Vence um Gigante (Lisboa: Livros Horizonte, 1987);Devagar ou a Correr (Lisboa: Livros Horizonte, 1987);Zaca-Zaca (teatro; Lisboa: Rolim, 1987);Uma História em Quadradinhos (com Maria Alberta Menéres; Porto: Asa, 1989; 2ª ed., 1992);Dez Contos de Reis (Lisboa: O Jornal, 1990);Da Rua do Contador para a Rua do Ouvidor (Porto: Desabrochar, 1990);André Topa-Tudo no País dos Gigantes (Porto: Civilização, 1990; 2ª ed., 1999).Toca e Foge ou a flauta sem Mágica (Lisboa: Caminho, 1992);Vamos Contar um Segredo (Porto: Civilização, 1993);Conto Contigo (Porto: Civilização, 1994 (Lisboa: Plátano, 1976);Teatro às Três Pancadas (teatro; Porto: Civilização, 1995);A Donzela Guerreira (teatro); (Porto: Civilização, 1996);As Estrelas - quando os Reis Magos eram príncipes (Porto: Civilização, 1996).

Poesia
Não se Chama Chama, Coimbra: Editora Vértice, 1984.Prosaicas, Porto: Afrontamento, 1985.Do Sabugo à Unha, Lisboa: & etc., 1993.
Ficção
De Vitor ao Xadrez, Lisboa: Livros Horizonte.O Almanaque Lacónico, Lisboa: O Jornal, 1991.Cinco Sentidos e Outros (contos), Lisboa: Civilização/Contexto, 1997.

Ensaio
Da Escola sem Sentido à Escola dos Sentidos, Porto: Afrontamento, 1988; 2ª ed., Civilização, 1994.Crescendo e Aparecendo (com Maria Alberta Menéres), Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, 1988 .O Bosque Mínimo, Lisboa: Instituto de Apoio à Criança, 1990.

Teatro
Teatro do Silêncio, Lisboa: Sociedade Portuguesa de Autores, 1988.Conte Comigo, Lisboa: SPA/Dom Quixote, 1996.
Doze de Inglaterra seguido de O Guarda-Vento


PRÉMIOS ATRIBUÍDOS E HOMENAGENS


1988- Grande Prémio de Literatura Infantil Calouste Gulbenkian.

sexta-feira, 27 de março de 2009

A CIDADE DOS RESMUNGOS



“A Corda Mágica”


Era uma vez um lugar chamado Cidade dos Resmungos, onde todos resmungavam, resmungavam, resmungavam.

No Verão, resmungavam que estava muito quente. No Inverno, que estava muito frio. Quando chovia, as crianças choramingavam porque não podiam sair. Quando fazia sol, reclamavam que não tinham o que fazer.

Os vizinhos queixavam-se uns dos outros, os pais queixavam-se dos filhos, os irmãos das irmãs. Todos tinham um problema, e todos reclamavam que alguém deveria fazer alguma coisa.

Um dia chegou, à cidade, um vendedor ambulante carregando um enorme cesto às costas. Ao perceber toda aquela inquietação e choradeira, pôs o cesto no chão e gritou:

— Ó cidadãos deste belo lugar, os campos estão abarrotados de trigo, os pomares carregados de frutas! As cordilheiras são cobertas de florestas espessas e os vales banhados por rios profundos. Jamais vi um lugar abençoado com tantos benefícios e tamanha abundância. Por que razão tanta insatisfação? Aproximem-se, e eu mostrar-lhes-ei o caminho para a felicidade.

Ora, a camisa do vendedor ambulante estava rasgada e puída. Havia remendos nas calças e buracos nos sapatos. As pessoas riram ao pensar que alguém como ele pudesse mostrar-lhes como ser feliz. Mas, enquanto riam, ele puxou uma corda comprida do cesto e esticou-a entre dois postes na praça da cidade.

Então, segurando o cesto diante de si, gritou:

— Povo desta cidade! Aqueles que estiverem insatisfeitos escrevam os seus problemas num pedaço de papel e ponham-no dentro deste cesto. Trocarei os vossos problemas por felicidade!

A multidão aglomerou-se ao seu redor. Ninguém hesitou diante da oportunidade de se livrar dos problemas. Todos os homens, mulheres e crianças da vila rabiscaram a sua queixa num pedaço de papel e lançaram-no no cesto.

Observaram o vendedor que pegava em cada problema e o pendurava na corda.

Quando terminou, havia problemas a tremularem em cada polegada da corda, de um extremo a outro. Disse então:

— Agora cada um de vocês deve retirar desta linha mágica o menor problema que puder encontrar.Todos correram para examinar os problemas. Procuraram, manusearam os pedaços de papel e ponderaram, cada qual tentando escolher o menor problema. Ao fim de algum tempo, a corda estava vazia.

Eis que cada um segurava o mesmíssimo problema que tinha colocado no cesto. Cada pessoa havia escolhido o seu próprio problema, achando ser ele o menor de todos.

Daí por diante, o povo daquela cidade deixou de resmungar constantemente. E sempre que alguém sentia o desejo de resmungar ou de reclamar, pensava no vendedor e na sua corda mágica.


William J. Bennett

O Livro das Virtudes II

Editora Nova Fronteira, 1996 (adaptação)

quinta-feira, 26 de março de 2009

NATÁLIA CORREIA





Um conto de embalar


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.



domingo, 22 de março de 2009

DIA MUNDIAL DA POESIA

LIBERDADE
Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...
Fernando Pessoa

A PEDRA NO CAMINHO


Conta-se a lenda de um rei que viveu há muitos anos num país para lá dos mares. Era muito sábio e não poupava esforços para inculcar bons hábitos nos seus súbditos. Frequentemente, fazia coisas que pareciam estranhas e inúteis; mas tudo se destinava a ensinar o povo a ser trabalhador e prudente.
— Nada de bom pode vir a uma nação — dizia ele — cujo povo reclama e espera que outros resolvam os seus problemas. Deus concede os seus dons a quem trata dos problemas por conta própria.
Uma noite, enquanto todos dormiam, pôs uma enorme pedra na estrada que passava pelo palácio. Depois, foi esconder-se atrás de uma cerca e esperou para ver o que acontecia.
Primeiro, veio um fazendeiro com uma carroça carregada de sementes que ele levava para a moagem.
— Onde já se viu tamanho descuido? — disse ele contrariado, enquanto desviava a sua parelha e contornava a pedra. — Por que motivo esses preguiçosos não mandam retirar a pedra da estrada?
E continuou a reclamar sobre a inutilidade dos outros, sem ao menos tocar, ele próprio, na pedra.
Logo depois surgiu a cantar um jovem soldado. A longa pluma do seu quépi ondulava na brisa, e uma espada reluzente pendia-lhe à cintura. Ele pensava na extraordinária coragem que revelaria na guerra.
O soldado não viu a pedra, mas tropeçou nela e estatelou-se no chão poeirento. Ergueu-se, sacudiu a poeira da roupa, pegou na espada e enfureceu-se com os preguiçosos que insensatamente haviam deixado uma pedra enorme na estrada. Também ele se afastou então, sem pensar uma única vez que ele próprio poderia retirar a pedra.
Assim correu o dia. Todos os que por ali passavam reclamavam e resmungavam por causa da pedra colocada na estrada, mas ninguém lhe tocava.
Finalmente, ao cair da noite, a filha do moleiro passou por lá. Era muito trabalhadora e estava cansada, pois desde cedo andara ocupada no moinho. Mas disse consigo própria: “Já está quase a escurecer e de noite, alguém pode tropeçar nesta pedra e ferir-se gravemente. Vou tirá-la do caminho.”
E tentou arrastar dali a pedra. Era muito pesada, mas a moça empurrou, e empurrou, e puxou, e inclinou, até que conseguiu retirá-la do lugar. Para sua surpresa, encontrou uma caixa debaixo da pedra.
Ergueu a caixa. Era pesada, pois estava cheia de alguma coisa. Havia na tampa os seguintes dizeres: “Esta caixa pertence a quem retirar a pedra.”
Ela abriu a caixa e descobriu que estava cheia de ouro.
A filha do moleiro foi para casa com o coração cheio de alegria. Quando o fazendeiro e o soldado e todos os outros ouviram o que havia ocorrido, juntaram-se em torno do local onde se encontrava a pedra. Revolveram com os pés o pó da estrada, na esperança de encontrarem um pedaço de ouro.
— Meus amigos — disse o rei — com frequência encontramos obstáculos e fardos no nosso caminho. Podemos, se assim preferirmos, reclamar alto e bom som enquanto nos desviamos deles, ou podemos retirá-los e descobrir o que eles significam. A decepção é normalmente o preço da preguiça.
Então, o sábio rei montou no seu cavalo e, dando delicadamente as boas-noites, retirou-se.

William J. Bennett
O Livro das Virtudes II
Editora Nova Fronteira, 1996(adaptação)

quinta-feira, 12 de março de 2009

GABRIEL DOS CABELOS DE OURO







Há muitos, muitos anos, andava de terra em terra a pedir esmola um velhinho careca. De Inverno, usava ele um gorro de lã enfiado até às orelhas e ninguém podia adivinhar que a sua cabeça era tão lisa e luzidia que mais parecia uma bola de marfim. Mas de Verão, o pobrezito não o aguentava por causa do calor que era muito e, assim, ele já sabia que, por onde passasse, os garotos iriam correr atrás dele a gritar:

— Olha o careca!... Olha o pelado!...

Cuidavam eles que o arreliavam. Mas o velhinho punha-se a abanar a cabeça de cima para baixo e de baixo para cima e a murmurar resignadamente:

— É bem feito!... É-me muito bem feito!... Os garotos calavam-se, intrigados com aquelas palavras. Até que um dia, um deles, mais amigo de saber que qualquer outro, resolveu aproximar-se e perguntar:

— Tiozinho, diz que é bem feito porquê?... Gosta de ser careca?

— Não, meu menino, não gosto — respondeu ele com um sorriso triste. — Quem poderia gostar?

— Então porque diz que é bem feito? — insistiu o garoto.

— Porque... — e o velhinho calou-se.

— Porquê, tiozinho?... Não quer dizer?...

— Bom... É que para te explicar tudo bem explicado, teria de te contar uma longa história. E estarás tu disposto a ouvi-la?

— Estou, pois.

Curiosos, os outros rapazitos, um a um, tinham vindo a acercar-se e todos eles gritaram em coro:

— Nós também queremos ouvir... Nós também queremos...

Então o velhinho sentou-se numa pedra, encostou-se a uma árvore e os garotos, uns dez, mais ou menos, sentaram-se no chão à sua frente, bem acomodados, de olhos bem abertos e ouvidos bem atentos.

E o velho começou:

— Pois é, meninos... Ninguém sabe o que a Vida lhe reserva... Às vezes tudo parece correr bem e, de repente, muda tudo. Comigo foi assim. Mas vamos à história... O meu nome é Gabriel. E tenho um irmão gémeo chamado Uriel. Os meus Pais eram pastores que do seu gado viviam. A lã e os queijos davam-lhes de sobra para o seu amanho. Mas não chegava para que se sentissem felizes. Eles queriam um filho. E então minha Mãe sonhava sonhos ambiciosos. À noitinha, quando aparecia no Céu a primeira estrela ou de madrugada quando, serenamente, adormecia a última, ela ria-se e dizia para o meu Pai:

— Vais ver... O nosso menino há-de ser mais lindo que a própria Estrela do Pastor ou que a Estrela da Manhã.

E quando o Sol despontava, a refulgir na Imensidade, minha Mãe continuava a sonhar em voz alta e extasiada:

— Vais ver... os cabelos do nosso menino hão-de brilhar como raios de sol.

— Tem juízo, mulher — atalhava meu Pai. — A mim me basta que seja um menino igual a qualquer outro.

— Isso não — protestava ela. — O meu menino há-de ser diferente. Há-de ser de ouro.O certo é que o Céu a ouviu, pelo menos em parte: nasci de cabeça calva, tão calva como a tenho hoje, mas dourada e a brilhar de um brilho tão intenso que iluminava a casa de ponta a ponta. Quanto ao meu irmão — que ninguém esperava — esse era, sim, tal como o meu Pai queria o filho: igual a qualquer outro.

Minha Mãe, desde aquele primeiro momento, encheu-se de medo, não fosse alguém roubar-me por amor do tesouro em que eu, na verdade, me ia tornando, pois que a minha cabeleira brotava densa e vigorosa e crescia com rapidez incrível em fios de ouro puro. Mas, apesar dos seus cuidados, exultava:

— Tu, meu filho, não tens que te apoquentar: tens o teu pão garantido. Um só dos teus cabelos vale um ano de trabalhos e canseiras.

E, à cautela, ia tecendo, tecendo toucas e toucados com que escondia de olhos estranhos a maravilha nunca vista de um menino de cabelos de ouro.

Ora, ao passo que eu vivia, pode dizer-se que à sua sombra, quase prisioneiro dos seus receios e carinhos, mas bem convencido de que o mais importante era, de facto, esse futuro despreocupado de que ela me falava constantemente, meu irmão Uriel, um rapazinho moreno, activo, ágil e destemido, passava os dias fora de casa, as mais das vezes na companhia do Pai, ajudando-o na labuta das ovelhas. Conhecia-as pelos nomes, assobiava-lhes se elas pretendiam afastar-se ou apontava-as aos cães bem treinados que imediatamente obedeciam à sua voz. Ajudava a tosquiá-las. Ajudava a ordenhá-las. E ocupava-se dos cordeirinhos que nasciam no monte. Em apertos de trabalho, acudia a qualquer vizinho e, com uns e com outros, ia aprendendo a ler e a escrever. «Quero saber coisas», dizia ele. E, depois de tudo isto, sobrava-lhe tempo ainda para correr ao desafio com gente da nossa idade, jogar à pedra e ao pau, subir às árvores e atirar-se às ondas a nadar e a pescar. Na verdade, nada lhe metia medo.À noite, quando chegava a casa, meu Pai tinha sempre alguma coisa de especial e extraordinário a contar do filho «igual a qualquer outro»:

— O rapaz é um azougue... Joga o pau que nem um feirante... Salta que nem um cabrito-montês... Nada que nem um peixe... Corre que nem um gamo... E já lê! Vê tu que já lê!...

— É vivo, é — concordava minha Mãe. E beijava-me, a mim, porque bem sabia que eu, no fundo, invejava o meu irmão, uma inveja amarga apesar de conformado à ideia de que neste mundo cada qual tinha o seu quinhão e que o meu era o melhor.

De repente, a sorte mudou de rumo. Num Inverno muito rigoroso, uma avalanche de neve desabou sobre a nossa aldeia e soterrou-a, com um fragor horrível que nunca mais se apagou dos meus ouvidos. Meus Pais lá ficaram e com eles muitos outros. Milagre foi que não ficassem todos: escaparam alguns. E esses resolveram fugir daquelas malfadadas paragens. Cada um seguiu o seu destino. Também Uriel decidiu que seguiríamos o nosso. E partimos, levando connosco apenas o que tínhamos no corpo: uns calções velhos, uma camisa rota e umas botas cambadas. Eu levava a mais um dos toucados tecidos por minha Mãe e que ela tanto recomendava que não tirasse da cabeça, à vista fosse de quem fosse. E Uriel levava o seu cajado de pastor.Andámos, andámos, eu sempre a lastimar-me, Uriel sempre a procurar animar-me:

— Tens que ter um pouco mais de paciência — dizia ele. — Não tarda que encontremos gente e eu peço trabalho...

— Mas eu não quero trabalhar — replicava eu. — Tenho o meu pão garantido.

— Tenho eu bons braços — respondia Uriel. — E a troco do meu trabalho dar-me-ão de comer que baste para os dois.

Chegámos por fim a uma aldeia à beira-mar. Nas ruelas, nem vivalma. Fomos descendo até à praia e aí deparámos com um grupo enorme de mulheres e de crianças que choravam e se arrepelavam porque um barco quebrara as amarras e boiava à deriva em riscos de se despedaçar contra os rochedos. E ninguém acudia, pois que os homens capazes de o fazer tinham saído todos para a faina da pesca.

— Um barco novo!... Quem há-de aturar o meu homem!... — soluçava uma das mulheres.

Uriel adiantou-se:

— Chorar de nada serve, tiazinha — disse ele.— É preciso é fazer alguma coisa de útil. Segure aqui.

Deu-lhe o cajado para a mão e, decidido, atirou-se à água e nadou, nadou, até que alcançou o barco.

Mudas de espanto, as mulheres olhavam, as crianças olhavam e ninguém podia acreditar naquilo que tinha em frente dos olhos: um rapazinho lutando contra as ondas bravias que o atiravam de alturas de entontecer a precipícios que elas próprias iam cavando, um rapazinho que acabou por dominar o barco e o arrastar até à areia.Então de todos os lados rompeu um clamor alvoroçado:

- Valente rapaz!... Tu quem és?... Donde vens?... Como te chamas?

E riam e choravam, abraçavam-no e beijavam-no. Todas à uma queriam levá-lo para sua casa, dar-lhe roupas, dar-lhe de comer, acarinhá-lo.

— Ganhaste-o bem — diziam elas. — Ganhaste-o bem.

Eu seguia tudo aquilo de longe, magoadíssimo porque me parecia que ninguém reparava em mim. Mas enganava-me. Uma rapariguinha gentil pôs-se a fitar-me com estranheza e acabou por perguntar:

— E tu quem és, com esse chapéu tão feio?

Mais magoado fiquei ainda. E respondi altivamente:

— Sou Gabriel, o irmão gémeo desse que salvou o barco.

A rapariguinha fez um gesto de surpresa e desprezo:

— Nem pareces!... E então gémeo! — E correu a juntar-se às amigas. E eu vi que, à medida que ela falava, todas se iam voltando para o meu lado e desatavam a rir, e percebi que era de mim que falavam e riam.

Nunca tal me acontecera! E não voltaria a acontecer, deliberei eu. E, raivosamente, arranquei da cabeça o toucado, e os meus cabelos de ouro, a tilintar e a reluzir, cobriram-me até à cintura.

Sem bem saber como, vi-me envolvido por gente de todas as idades, que se empurrava e atropelava. E senti que mãos sôfregas e brutais me arrancavam aos punhados de cabelo. Coisa curiosa: não me doía. Mas enchi-me de pavor e gritei com todas as minhas forças:

— Socorro, Uriel!... Acode-me, Uriel!...

Imediatamente vi Uriel. Trazia na mão o seu cajado. E vestia uma camisola grossa e uns calções que eu não lhe conhecia. Intrépido como sempre, gritou, bateu, e conseguiu chegar até mim. E então, começou a manejar o seu pau com tanta arte que não tardou a abrir uma clareira à minha volta.

— Que ninguém se atreva! — ameaçava ele. E, agarrando-me por um braço, quase me arrastou pela praia além.

— Corre, Gabriel, corre — incitava-me ele. Tive tempo ainda de ver que toda aquela gente se adornava com os meus cabelos. Lançavam-nos ao pescoço, ao jeito de colares. Enrolavam-nos nos pulsos, ao jeito de braceletes. E o susto por que passara deu lugar a uma vaidade sem limites. E, assim, quando Uriel repetiu: «Corre, Gabriel, corre», respondi de mau modo:

— Não sou gamo, como tu.

Uriel olhou para mim, surpreendido:

— Não vês que podem voltar?... Espera... Na verdade, os teus cabelos são bonitos demais. O melhor é continuar a escondê-los. Põe o carapuço. — Ele próprio mo ajeitou na cabeça. — Assim é melhor. Vamos.

Obedecer-lhe em tudo começava a tornar-se-me insuportável. Senti nascer em mim o desejo péssimo de o atormentar:

— Corres muito porque tens o cajado em que te apoias... Olha lá se mo emprestas!...Uriel nem hesitou:

— Pois empresto. Pega.

Mas eu não lhe peguei.

— Pensando bem, não o quero para nada. É mais um tropeço. Leva-o tu, já que o trouxeste. Tenho é frio. Tu não, porque tens boas roupas.

Uriel pôs-se a rir:

— Queres trocar?

— Quero a camisola.

Uriel despiu-a e deu-ma:

— Assim até fico melhor... Ela é quente.

Eu vesti-a, não muito satisfeito com a minha consciência. Mas continuei:— E tenho fome. Uriel voltou a rir-se:

— Deves ter, sim. — Tirou do bolso um merendeiro ainda morno. — Foram as mulheres que mo deram... Guardei-o para ti.

Tirei-lho da mão, bruscamente. E perguntei, irritado:

— Porque estás tu sempre a rir?

Uriel pôs-se muito sério:

— Porque não vale a pena chorar. Era bom que aprendesses. E, agora, come depressa. Ou antes, vamos andando e tu vais comendo. Vem daí.

— Para onde?

— Só Deus o sabe. Aqui não estás seguro.

Eu ia cansado e com calor. Ele não. Corria ligeiro à minha frente. Saltava barrancos. Voltava atrás. Pulava de pedra em pedra. Dependurava-se dos ramos baixos das árvores. E tudo isto sem parar. Mas, de súbito, estacou, fitou um ponto ainda distante:

— Um lobo — disse ele. — Não saias daí. Vi-o espiar, rastejar, esconder-se atrás de um penedo...

O lobo avançava e na minha direcção. Levava nos dentes um cordeiro a balir. Eu tremia. Queria fugir e os meus pés eram de chumbo. Queria gritar e a minha garganta era um lenho seco. Uriel... Onde estaria Uriel que não me acudia?

Uriel esperava o lobo. E, no momento propício, saltou do esconderijo e, com o cajado, desferiu-lhe um golpe certeiro. O lobo largou a presa, uivou de dor e acabou por fugir aos galões e desaparecer por entre as fragas.

Uriel pegou no cordeiro, pô-lo às costas e chamou por mim:

- Gabriel... Gabriel...

Apareci-lhe, ainda tonto de medo. Quanto a Uriel, era como se nada tivesse acontecido.

— Vamos descer ao vale — disse ele. — O rebanho não deve andar longe.

Antes, porém, de lá chegarmos, vimos gente que subia a encosta ao nosso encontro. À frente vinha o pastor:

— Eia, rapaz, vi tudo!... Tens cá uma destas almas!...

E, mais uma vez, lá foi Uriel aclamado e levado pela multidão, pasmada e entusiasmada. E eu atrás, roído de inveja! As coisas não ficariam assim.

Acotovelando uns e outros, fui perfilar-me ao lado dele.

— Que vem a ser isto?... — exclamou o pastor. — Que barrete mais esquisito tu arranjaste, amigo!... — E largou uma tal gargalhada que todos os outros desataram a rir também, e só se calaram quando Uriel gritou:

— Deixem-no! É meu irmão.

Achei que não bastava. Queria valer mais do que ele e pelos meus próprios méritos. E arremessei o toucado ao chão.

— Sou Gabriel dos Cabelos de Ouro — proclamei bem alto.

Os meus cabelos soltos eram tão belos que todos pareciam ter esquecido o feito de Uriel para se quedarem boquiabertos a olhá-los. Foi um momento só. Logo mãos ávidas se estenderam para eles e, quando se retiravam, dos seus dedos escorriam fios de ouro a faiscar.

Apesar de todo o meu orgulho, gritei, gritei, gritei. Mais uma vez Uriel me valeu, mais uma vez me arrastou e mais uma vez me obrigou a esconder o meu tesouro.

— Ainda acabas por ficar sem nenhum — ia dizendo Uriel.

Eu esquecia tudo com demasiada rapidez:

— Não te rales... São meus, não são? E hão-de crescer outra vez como todos os outros, não é?

Uriel não deu resposta. Caminhava depressa. Que iria a pensar de mim?... Pouco me importava. Insisti:

— Crescem ou não crescem outra vez?

— Sei lá... É natural que sim.

— Então pronto.Apressei-me para não o perder de vista. Andámos, andámos sem destino. Chegámos por fim a uma cidade tão grande como nunca poderíamos ter imaginado. O movimento era de enlouquecer, o barulho infernal, e eu vi bem que Uriel, sempre animoso, estava tão desnorteado como eu.

— Se ficássemos por aqui? — disse ele, apontando os degraus de um portal.

Sentámo-nos. Uriel encostou-se e pegou logo no sono. Eu não o conseguia. O ruído era muito. A fome era muita. Olhei para Uriel. Dormia profundamente. Pus-me de pé e deixei-me guiar pelo cheiro aliciante de comidas boas, que se espalhava pelo ar e me lembrava os bons tempos da nossa casa.

Aspirando, aspirando, cheguei à entrada de uma sala dez vezes maior que o nosso antigo redil. Ao meio, sentados em volta de uma grande mesa, mui­tos e muitos homens comiam, bebiam e conversavam. E um outro ia e vinha, trazendo e levando tachos e panelas fumegantes. Não resisti. Entrei e fui ter com ele:

— Dê-me de comer a mim também. Morro de fome.

Ele olhou-me de alto a baixo:

— Isto paga-se, meu rapaz.

Admirei-me:

— Lá na minha terra não era assim. A minha Mãe, quando tinha de comer, dava-o a quem o pedia. — E eu quase chorava.

— Mas eu não sou a tua Mãe. Aqui paga-se.

— Eu pago o que o senhor quiser.

— Com quê?... Não tens cara de muitos haveres.

— Engana-se. Venho já.

Aprendera a desconfiar. Saí. Procurei um recanto escuro e arranquei uma porção de cabelos.

Voltei à sala grande com a fome a doer-me cada vez mais e os fios de ouro a luzirem-me nas mãos.

— Chega? — perguntei.

O homem abriu a boca, de tão pasmado.

— Dá cá isso!

— E, num instante, fê-los desaparecer no bolso, enquanto lançava olhares esgazeados em redor, não fosse alguém ter dado conta. Mas tudo passara despercebido e a sua voz tornou-se branda e afável:

— Onde o arranjaste?... Come, rapazinho, come à tua vontade. E ainda podes levar o que te apetecer para o teu farnel. Ein! Que dizes tu a isto?

Eu não dizia nada. Devorava. E o homem sempre a servir-me iguaria sobre iguaria, e a insistir:

— Diz-me, rapazinho, onde arranjaste o ouro?... Come, come, meu filho... Olha-me para esta delícia de carne... Onde arranjaste o ouro?

Todo ele era mel e ternura. Mas eu apanhara medo às multidões. E apontei para os homens que continuavam à mesa. Ele entendeu. E fez-se ainda mais carinhoso:

— Olha, meu queridinho, dorme cá. Arranjo-te uma caminha fofa. E amanhã falamos, está bem?...

Uma caminha fofa!... Nem quis saber de Uriel. Aceitei. E dormi, dormi, como há muito não dormia.

Acordei havia ainda estrelas no Céu. Não percebi logo onde estava. Na caminha fofa não era, de certeza. Era, sim, nas pedras duras de uma rua estreita e enlameada. No chão, a meu lado, um saco de comida que chegaria bem para uma semana.

Palpei a cabeça. Já lá não estava o toucado, mas sim uma boinazita vulgar. E dentro dela alguma coisa faltava: o homem roubara-me todo o meu cabelo de ouro.

Só então me veio à ideia que estava sozinho numa terra estranha, que não tinha com que pagar fosse o que fosse enquanto o cabelo não me crescesse e que não sabia de Uriel nem ele de mim.

Vagueei pela cidade na esperança de o encontrar. Talvez não estivesse muito longe...Nisto, ao dobrar de uma esquina, vi ao fundo da rua um clarão intenso. Corria gente de todos os lados. Corri também. Vi uma casa a arder. Labaredas vermelhas saltavam das janelas e do telhado, em turbilhões pavorosos. Uma mulher desgrenhada gritava e esbracejava tentando arrancar-se às mãos que a seguravam.

— A minha filha! Larguem-me! Quero a minha filha!

Mas ninguém considerava possível entrar naquele braseiro onde iriam morrer uma criança e um rapazinho que a ele se atrevera e que não voltara.

— Morreram os dois — murmurava-se.

E a mulher chorava e já todos choravam com ela.

— Deixem-me! Quero a minha filha! Dou tudo o que tenho a quem salvar a minha filha!

Pensei logo que, se ali estivesse Uriel, alguma coisa haveria de fazer, não hesitaria, arrojar-se-ia às chamas... E eu tinha razão. Vi-o, vi o próprio Uriel aparecer à porta da casa incendiada, cercado de labaredas altíssimas e com uma criança nos braços. Vinha negro, a roupa queimada, mas nunca esqueci o seu ar de felicidade ao ver a mãe agarrada à filha, a beijá-la, a apertá-la, sem poder convencer-se de que a tinha ali, viva, depois de a ter tido por morta nos horrores daquele inferno.

Já mais calma, aproximou-se de Uriel. Eu aproximei-me também sem que ele desse por mim. Donde estava ouvia-os nitidamente:

— Como te chamas? — perguntou ela.

— Uriel.

— Teus pais onde estão?

— Senhora, estão ambos no Céu.

— Serás meu filho, Uriel. Dar-te-ei o que tu quiseres.

— Senhora, nada quero senão trabalho.

— Que gostarias tu de vir a ser?

— Meu Pai era pastor. Sei toda a sua arte. Mas gostava de saber coisas.

— Saberás tudo quanto desejares saber. Vem comigo.

— Obrigado, senhora, mas não posso. Tenho um irmão e desde ontem que não sei dele. Tenho de o procurar.

— Ajudar-te-ei. Encontrá-lo-emos. E viverá contigo e estudará contigo.

Ouvira o suficiente. Fugi. Passara a admirar Uriel como nunca o admirara. Mas também compreendera que nunca seria como ele, que não me interessava saber coisas, que não me interessava trabalhar, que me bastavam os meus cabelos de ouro. Eles cresceriam e eu já sabia que tinha de os resguardar e esconder da cupidez do mundo. E que teria sempre esse mundo a meus pés, com um simples punhado deles.Assim pensava eu. Mas o que nunca pensei foi que tivesse de os poupar. Cobiçava tudo e, com os meus cabelos, tudo conseguia. Esbanjei-os, sem que­rer convencer-me de que eles se iam tornando cada vez mais leves, cada vez mais raros. E era eu ainda bem novo quando me vi de cabeça pelada como a palma da minha mão e sem sombras da sua antiga e bela cor de ouro.

E eu não tinha mais nada.

Há uns anos atrás, soube de Uriel. Estudou. É um homem de valor e de tanta sabedoria que vai gente de muito longe em busca do seu conselho. Acode a todos. Todos o estimam. Casou com a menina que salvou das chamas. Tem filhos, um rancho deles. Com certeza que é feliz. E eu... eu sou isto que estão vendo... uma miséria.

Gabriel, o velhinho careca, suspirou e calou-se.

Os garotos olhavam-no, também em silêncio.

- Foi bonita a sua história — disse um, por fim. — Acabou?

— Não, não acabou. Queria ainda que me dissessem qual dos dois gostariam de ser: Uriel ou Gabriel dos Cabelos de Ouro?

— Uriel — responderam todos.— Valeu a pena contá-la — disse o velho.

Levantou-se devagar e enfiou o gorro:

— O tempo arrefeceu...

E lá foi, de sacola ao ombro, arrastando os pés pela estrada fora.



Patrícia Joyce
Gabriel dos cabelos de ouro e outras histórias, Lisboa, Editorial Verbo, 1983

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

CECELIA AHERN


O livro que passa a Filme: "Eu amo-te"

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

Mozart, o menino mágico

Havia um cravo no meio do quarto e uma janela a dar para a rua. O cravo não era uma flor e sim um instrumento polido, elegante, bonito, capaz de fazer música, de encher os dias com o som suave das suas teclas brancas e negras, com a alegria dos seus acordes, das suas harmonias leves e limpas como a voz do vento.O menino levantou-se do chão, sentou-se no banco almofadado e pousou as mãos pequeninas sobre as teclas. Que música ia nascer dos seus dedos saltitantes como pássaros contentes com a chegada da Primavera?Atrás do menino havia um vulto e atrás do vulto uma luz igual à que cobre as telas dos pintores. O menino gostava da luz e o seu sorriso de menino feliz era já uma espécie de música a enfeitar a vida da casa.“Amadeu”, — disse a voz atrás do menino —, “hoje tens ainda muito trabalho pela frente, dois minutos para estudar, uma longa lição para aprender.”O menino gostava que soubessem que, para ele, tocar era uma maneira de brincar e que o cravo, o piano e o violino bem podiam tomar o lugar dos cavalos de pau, dos soldadinhos de chumbo, das máscaras de cartão.Um dia o menino desenhou a giz um rosto no chão, uma andorinha no tapete persa, uma borboleta na tampa do cravo. Depois inventou letras gémeas dos algarismos e das notas de música e deu nomes raros às melodias que lhe esvoaçavam na cabeça, roubando-lhe o sono e o sossego.Os dedos do menino saltavam, nervosos, de tecla para tecla, de música para música. O vulto, atrás do menino, era familiar e meigo. Chamava-lhe Pai, queria-lhe muito. À frente, num trono alto, um homem enfeitado de ouro ouvia, atento, a música que nascia dos dedos pequenos do menino. Chamavam-lhe Imperador e era senhor de uma cidade luminosa chamada Viena. Gostou do que ouviu e disse: “Há-de ir longe, muito longe este menino”. Não se enganava, o Imperador.O menino não gostava de castigos, de notas desafinadas, de ralhetes, de sons de trompete. Amava a doçura do cravo e a voz alta e sonante do piano. Queria tocar com os dedos pequeninos o horizonte da música. Não lhe faltava nem vontade, nem saber, nem engenho. Era um menino mágico igual aos dos sonhos e das lendas.Um dia o menino faz as malas, guarda nelas, bem guardados, os brinquedos e as partituras, pega na mão da irmã, na mão do pai, nas rédeas do vento e lança-se na lonjura dos caminhos. Hoje Munique, amanhã Paris, depois Bruxelas e Coblenz, mais adiante Londres e Frankfurt. O menino aprende os nomes das cidades e das gentes que se deixam assombrar em salas brilhantes e grandes com o som da música que nasce, irrequieta, dos seus dedos.“Chegou o dia”, diz o pai do menino, “de mostrares as tuas sinfonias”. O menino achava que era ainda cedo, mas gostava de obedecer à vontade do pai. Escreveu no caderno de viagem os nomes de Bach e de Haendel e da música de ambos fez companhia fiel para concertos e andanças. A música era agora o seu único brinquedo, a festa dos seus dedos pequeninos e velozes sobre as teclas brancas e negras.Rendem-se as cidades à magia dos seus dedos que inventam trios e sinfonias como cascatas de som. Hoje Haia, amanhã Paris, depois Milão, de novo Londres e Munique.O menino está doente e cansado. Chamam-lhe prodígio, menino-prodígio, e ele não gosta.Prefere que lhe chamem apenas menino, ou então Wolfgang Amadeus, Amadeu para os amigos que com ele partilham a viagem destes versos.O menino gosta de fazer amigos. Florença é uma cidade bonita, clara e cantante, com praças, igrejas e mercados. Um outro menino com dedos mágicos como os seus toca violino e gosta de brincar. Chama-se Tomás e tem olhos azuis. A música os junta, a música os separa.Cada um segue o seu rumo, que as estradas de fazer amigos nem sempre são iguais às de fazer música.Em Roma há quem diga: “Uma grandeza assim só em Miguel Ângelo”. O menino não sabe quem seja, se é músico ou pintor, mas pressente que é alguém tão alto e brilhante como as catedrais do mundo na hora fantástica em que todos os sinos chamam para a festa. O meninotem nos ouvidos o eco imenso dos aplausos. Que lhe dêem, doravante, tudo menos silêncio e escuridão.O menino não gosta de usar cabeleira postiça, casaca bordada a ouro, pó na face. Mas que há-de fazer? Toca nos salões, nas salas de concerto para gente rica e exigente e só lhe resta seguir a moda, respeitar o gosto de quem manda. Ninguém espera que ria, que brinque, que salte e que corra. Mas ele, às vezes, lembra-se que ainda é menino e em vez de música deixa uma pirueta, uma careta na lembrança de cardeais e de duques.O menino também sabe cantar com uma voz fina e perfeita que enche as capelas e os salões. Canta um Miserere e Roma fica de joelhos a adorar nele uma santidade que não tem, uma realeza que não quer ter. Ele é somente um menino, um menino de músicas mágicas, mas ainda e sempre um menino.Às vezes o menino sonha que tem altura de estátua, largura de rio, tamanho de onda.Depois acorda em sobressalto e sobra-lhe do sonho que teve uma réstia de som, um farrapo de música, um ímpeto de sinfonia. O menino descobre que cresce ao ritmo dos sonhos que de noite e de dia o visitam, à velocidade luminosa dos astros.O menino acrescenta palavras à música, dá voz a personagens, dá corpo a reis e a mitos, dá nome a cidades e a séculos. Tem catorze anos e escreve uma ópera. Depois escreve uma cantata para casar um arquiduque. Dá nomes às óperas: Mitridate, Lúcio Silla, Finta Giardiniera. O mundo é um tapete de espantos e vénias que se desenrola a seus pés.O triunfo é um pássaro que lhe cabe na concha da mão. Mas apetece-lhe ser sempre menino. Para sempre menino, como se pudesse ser esse o seu destino.O menino está em Paris, mas pertence a todas as cidades que amam a sua música, que cantam na voz das suas óperas e cantatas. Paris abre-lhe portas que a tristeza se apressa a fechar. Parte a mãe para um lugar aonde não chega, nunca chegará, o som da sua música. O menino está só e infeliz. Sente-se indefeso como todos os meninos. Volta a casa e chora, dobrado como um menino triste, no colo do pai que o consola.O menino sonha com uma flauta que seja mágica, com uma música que seja diferente.Usa a língua italiana nas primeiras óperas e a língua alemã, a que entra no que diz e no que escreve, para escrever outras a que chama: Flauta Mágica, O Rapto do Serralho. Todas lhe exaltam a mão esquerda, a mágica mão que dança sobre as teclas como uma bailarina com véus de sonho e de brisa.Há um vulto ao lado do menino, que não é o de seu pai, nem o de um anjo protector. É um vulto que se escreve com nome de música. Chama-se Joseph Hayden e diz: “Compositor maior, senhores, nunca eu vi ou ouvi”. O menino torna-se gigante na admiração e no afecto dos que oouvem tocar. É um menino gigante com um riso alegre e sonoro como é sempre o riso dos meninos quando a música os faz felizes.O menino é pálido, magro, doente. Mesmo quando a febre e a fadiga o levam à cama, não deixa de compor, de escrever, de inventar sinfonias e concertos, de mandar cartas, de endereçar mensagens. Não sabe nem quer parar. Não é capaz. Há nos seus olhos uma luz que não se apaga e que o faz ter sempre rosto de menino, idade de menino, gestos de quem ainda deixou muito para brincar.As mãos do menino cantam, dançam, inventam. São mágicas como o riso do menino.Quando se erguem no ar, fazem crescer a força da música que acorda as cidades, de Salzburgo, onde nasceu, até Milão, Paris ou Londres, que não se cansam de dizer: “Como tu nunca vimos igual”. Mas o menino sente que o elogio é coisa incómoda, de feição só para gente idosa. Dá uma gargalhada e nasce uma nova sinfonia.As mãos do menino esbanjam o dinheiro que ganham com pequenas e grandes coisas, com festas e com surpresas, presentes e brindes. O menino é generoso e gosta de ser amado.Só se sente feliz quando, à sua beira, os outros também são felizes. É essa, afinal, a lei de ouro da sua música.O menino sabe que a harmonia do mundo começa e acaba na sua música. Fora dela é a desordem, a tristeza, a doença. Façam-lhe tudo menos estragar, ofuscar a luz da sua música.Vê-lo-ão em fúria, com mãos ameaçadoras e palavras altas e graves, se lhe maltratarem uma sinfonia, uma cantata, uma ópera.O menino esquece-se do tempo. A música acena-lhe de dentro da noite, chama alto por ele. E ele perde o sentido das horas, deixa escapar por entre os dedos o fio do tempo. Compõe, compõe sempre, com uma pressa só igual à de quem corre contra o tempo por saber que já não tem tempo. Dorme sem ter horas, escreve sem ter fome ou sede, inventa-se e reinventa-se no muito que faz como se lhe restassem poucos dias para o fazer, para o sonhar.Engana-se quem o festeja, quem o quer adulado e adorado. Para ele só a música conta e a ternura dos que ama, a da mulher, do pai, dos amigos. A música não é uma casa, nem uma estrada, nem uma lua acesa a medo no escuro da noite. A música é um universo povoado por cometas, planetas e sóis de mil e uma cores. E ele é o único habitante capaz de pôr ordem nesse universo, de lhe dar harmonia, sentido e voz.Há quem não goste que o menino toque de igual modo para os que tudo têm e para os que são donos de nada. Para uns querem brilho, para outros silêncio apenas. Mas o menino não faz distinção entre uns e outros. Para ele há os que sabem e os que não sabem ouvir. No meio está uma espiral de sons, de notas mágicas, que cresce com os sonhos do menino.O menino tem já a idade das sinfonias e das óperas que compôs. Cresceu, mas não deixou de ser menino. Acorda quando o dia acorda e passeia pela casa arejada e branca as ideias novas, as melodias cantantes, os fragmentos de música que depois vão salpicar de notas as partituras, os cadernos. Nenhum dia é igual ao outro dia. Sucedem-se, diferentes, porque a música que os habita também nunca se repete.Um dia, um rei diz ao menino: “Esta ópera é muito bela, mas tem notas a mais”. O menino, que é rei e senhor da sua música, fica sisudo e responde: “Só tem as notas que são precisas”. Aos reis, aos imperadores, aos arquiduques só se responde quando eles pedem uma resposta. Mas o menino, que também é rei, à sua maneira, responde com as palavras que acha justas e acertadas. Não precisa de coroa nem de trono.Há um muro de inveja levantado à volta do menino. Mas ele não se importa porque sabe que há uma luz que nada nem ninguém impedirá de entrar na sua música. Cobiçam-lhe a alegria, o génio, o gosto de ser menino, o riso e o prazer de ser livre. Mas ele não se importa porque sabe que há na sua música uma voz a que nenhuma outra voz se pode sobrepor, por ser única e imensa.O menino nunca abandona aqueles que ama. A música é a ponte que os liga. Constança, sua mulher, adoece e o menino, que a vida tornou crescido e atento a tudo, toca para ela, para que a febre baixe e a dor não lhe roube o sono. “Dorme, Constança, dorme porque há uma música bonita que traz sonhos nas asas e os poisa sobre as tuas pálpebras”.A doença começa a lançar um véu de tons sombrios sobre os olhos do menino, que nunca pára de tocar, nem para dormir nem para comer. O menino sente que uma grande pressa lhe magoa o peito e lhe agita os dedos. Todas as horas se tornam apenas instantes quando tem de compor. Todos os dias se tornam minutos quando tem de tocar. Uma vida inteira, mesmo longa, seria breve para toda a música que tem dentro da cabeça.Hoje um acto de ópera, amanhã um andamento de sinfonia ou de concerto, uma cantata, um divertimento. O menino sente que a febre lhe arde nos olhos e que a noite lhe adormece nos dedos. Tem pressa, cada vez mais pressa. Chegam amigos, mas não está para eles; quer estar só. Só, com a música toda que tem para escrever.Um homem visita o menino sem deixar o nome. Fala de alguém que partiu, da pena que sente, da tristeza que o verga. Quer uma música que saiba dizer tudo isso e muito mais, que diga a sombra e a mágoa. A encomenda está feita, o preço combinado: cem ducados. Ficará pronto, promete o menino, em quatro semanas. Com o Requiem, que é assim que a obra se chama, cresce, veloz, a tristeza do menino.Um pássaro vestido de névoa pousa no parapeito da janela do quarto do menino. Anuncia dias sem luz, horas magoadas e sombrias. E o menino trabalha, trabalha sempre, no desamparo da cama desfeita, da comida entornada, da febre a subir, do corpo a doer. Tem pressa, muita pressa, mas o tempo não chega para cumprir a promessa.O pássaro está pousado dentro do sono do menino a vigiar-lhe os sonhos, a seguir-lhe as ideias, a afugentar-lhe a febre com um constante bater de asas. A cabeça do menino está cheia de música. Entram e saem do quarto aqueles que ama. “Está tão doente o menino”, lamentam-se. Ele não os pode ouvir, que os seus ouvidos são conchas, búzios e casulos onde a música não cessa nunca de tocar.O menino adormece e acorda, desmaia e volta à razão. Deixou de poder distinguir a noite do dia, a sombra da luz. E a pressa, essa, nunca abranda. “Tenho o Requiem para acabar, não faltarei à promessa”. Mas falta sem querer faltar. Quando vêm buscar a obra, o menino fechaos olhos e já não está para responder, seja a quem for.É mais triste que a tristeza o dia da despedida. O menino vai deitado com tão pouca companhia: as lágrimas de quem sempre soube amá-lo; a sinfonia grave da chuva, mais a cantata do vento, mais a ópera do silêncio. Há um pássaro pousado no poleiro alto de um cedro a dizer adeus, baixinho, com um leve bater de asas. “Adeus, menino, adeus, que saudades já temos, de ti...”No patamar de uma nuvem está um cravo aberto, um piano com teclas de vento. O menino senta-se e toca e as estrelas em volta começam a cantar. Passa um cometa e diz: “Bonita música, essa, Amadeu. Passa um meteoro e murmura: “Ensina-me também a cantar, Amadeu”. Cá em baixo, na terra, enfeita-se o silêncio com o eco de mil coros. O menino guarda a partitura e viaja sobre um raio de luz até ao planeta distante onde só a música pode ser rainha.Está um pássaro pousado nas teclas de um piano, está um pássaro a cantar enquanto a noite dorme. O menino brinca com a lua, veste casaca bordada a ouro e tem cabelos feitos com fios de prata.Voltou a ter a idade saltitante dos brinquedos e dos sonhos. O seu riso é do tamanho da alegria do mundo. Tudo em redor se cala só para o ouvir tocar, com o encantamento imenso que apenas a magia é capaz de explicar. Até já, até sempre, Amadeu!
José Jorge Letria
Mozart, o menino mágico
Porto, Ambar, 2006

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009

A PÉROLA de John Steinbeck


A Pérola é um romance de John Steinbeck, de título original The Pearl, escrito em 1945.
A história, considerada pelo autor como uma parábola, tem como personagens principais Kino, um índio mexicano, sua esposa Juana, seu filho Coiotito, o povo do vilarejo, e ela... a pérola do mundo.
Ao ser picado por um escorpião, o filho de Kino, Coiotito, fica mal a ponte de correr riscos de vida. Kino, então, tenta ajuda na cidade, porém sendo considerado sub-raça (ou um animal qualquer) pelo médico, não consegue atendimento.
Decorrido um tempo, Kino deita a canoa ao mar e lança-se nas águas com a esperança de conseguir uma pérola para que pudesse pagar o tratamento de seu filho, com as bençãos de Juana.

Acontece que Kino de facto consegue a pérola, a pérola do mundo, a maior pérola jamais vista, um "presente" que trouxe a Kino não a paz e a alegria, mas o mal e a tristeza.

Com um estilo literário atractivo, John Steinbeck desponta como um dos maiores escritores de todos os tempos, ao lado de Hemingway e Faulkner.

Steinbeck fora ainda laureado com o prémio Nobel e o Pulitzer.